Para além da curva da estrada, de Alberto Caeiro

Para além da curva da estrada

Talvez haja um poço, e talvez um castelo,

E talvez apenas a continuação da estrada.

Não sei nem pergunto.

Enquanto vou na estrada antes da curva

Só olho para a estrada antes da curva,

Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.

De nada me serviria estar olhando para outro lado

E para aquilo que não vejo.

Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.

Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.

Se há alguém para além da curva da estrada,

Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.

Essa é que é a estrada para eles.

Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.

Por ora só sabemos que lá não estamos.

Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva

Há a estrada sem curva nenhuma.

Alberto Caeiro é um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa.

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Canção de Outono, de Cecília Meireles

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?
E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando aqueles
que não se levantarão...
Tu és folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

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Costurando a vida! de Mia Couto

– Fica-te tão bem o dia que trazes.
Onde é que o arranjaste?
– Fui eu que fiz.
Já me aborreciam os dias sempre iguais, sempre a mesma coisa, e resolvi arriscar um toque personalizado.
– E como fizeste?
– Aproveitei coisas que tinha e a que voltei a dar uso.
Subi as bainhas da manhã para deixar entrar mais claridade e bordei uns pontos de exclamação nos bolsos para ter sempre à mão maneira de me espantar com a beleza da vida.
Descosi velhos hábitos e teci algumas considerações importantes, como a de apanhar as malhas caídas dos dias com força de vontade e coragem.
Depois, junto à fímbria da noite, deixei abertos uns rasgos de imaginação e prendi os sonhos com colchetes de luz à esperança num mundo melhor.

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Sonhos, de Ana Maria Lopes

Sonhos

Não sei quantas vezes em minha vida

eu sonhei.

Falo dos sonhos em alerta

os sonhos sonhados despertos.

O sonho é amigo e cúmplice da fantasia.

Às vezes, sonho e fantasia se misturam tanto

que geram espanto

quando os tentamos separar.

E a farra da mistura é tamanha

que quando vamos

um do outro decifrar,

não sabemos se o sonho se vestiu de fantasia

ou se a fantasia escapou para sonhar.

    Ana Mara Lopes nasceu no Rio de Janeiro, mas radicada em Brasília. É escritora, poeta e  jornalista brasileira.

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O espelho, de Mia Couto

Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me, a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.

 

É autor um autor da literatura contemporânea,  jornalista e biólogo moçambicano.

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A Alma Imoral Nilton Bonder

“Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo.
Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito.
Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos.
Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade.

Nilton Bonder é escritor e rabino brasileiro, na Congregação Judaica do Brasil, no Rio de Janeiro.

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Caixa de costura, de Flora Figueiredo

Venho costurando minha vida

com linhas de saudade.

Procuro equilibrar-lhes a cor

para que o resultado final não seja triste.

Por vezes, é o cinza que insiste;

por vezes, impera o marrom.

Ainda bem que tem saudade bonita;

mudo o tom, amarro fitas,

busco a outra ponta do novelo;

intercalo a trama em amarelo.

A saudade é assim mesmo,

tecelã do tempo.

Quando menos se espera,

arremata o momento, leva embora,

deixa a porta encostada, o cadarço de fora,

e nunca avisa a hora de voltar.

Ainda hei de costurar com verde florescente

e, se a saudade chegar autoritariamente,

vai se sentir enfraquecida.

Enquanto procuro a cor,

vou costurando a vida,

sem saber qual vai ser o resultado.

Caso ele não fique combinado,

dou um nó, encosto agulha, guardo a linha,

que essa culpa roxa não é minha.

É uma artimanha branca do passado.

 

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Como nascem as manhãs, de Flora Figueiredo

O fundo dos olhos da noite

guarda silêncios.

Esconde na retina

a menina que corre descalça em campo aberto.

Pálpebras cerradas, a noite emudece.

A menina com medo

faz um furo no escuro com a ponta do dedo.

Cai um pingo de luz.

Amanhece.

Flora Figueiredo é uma poetisa, cronista, compositora e tradutora brasileira, nascida em São Paulo.

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