Costurando a vida! de Mia Couto

– Fica-te tão bem o dia que trazes.
Onde é que o arranjaste?
– Fui eu que fiz.
Já me aborreciam os dias sempre iguais, sempre a mesma coisa, e resolvi arriscar um toque personalizado.
– E como fizeste?
– Aproveitei coisas que tinha e a que voltei a dar uso.
Subi as bainhas da manhã para deixar entrar mais claridade e bordei uns pontos de exclamação nos bolsos para ter sempre à mão maneira de me espantar com a beleza da vida.
Descosi velhos hábitos e teci algumas considerações importantes, como a de apanhar as malhas caídas dos dias com força de vontade e coragem.
Depois, junto à fímbria da noite, deixei abertos uns rasgos de imaginação e prendi os sonhos com colchetes de luz à esperança num mundo melhor.

Baú de espantos, de Mário Quintana

“… pulando e cantando debaixo da chuva

curtindo o frescor da chuva que desce o céu

o cheiro de terra que sobe do chão

o tapa do vento cara molhada!”

                   Trecho da poesia Família descontrolada, do livro Baú de espantos,  de Mário Quintana

Mário Quintana (1906-1994) foi um poeta, tradutor e jornalista brasileiro.

O espelho, de Mia Couto

Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me, a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.

 

É autor um autor da literatura contemporânea,  jornalista e biólogo moçambicano.

Caixa de costura, de Flora Figueiredo

Venho costurando minha vida

com linhas de saudade.

Procuro equilibrar-lhes a cor

para que o resultado final não seja triste.

Por vezes, é o cinza que insiste;

por vezes, impera o marrom.

Ainda bem que tem saudade bonita;

mudo o tom, amarro fitas,

busco a outra ponta do novelo;

intercalo a trama em amarelo.

A saudade é assim mesmo,

tecelã do tempo.

Quando menos se espera,

arremata o momento, leva embora,

deixa a porta encostada, o cadarço de fora,

e nunca avisa a hora de voltar.

Ainda hei de costurar com verde florescente

e, se a saudade chegar autoritariamente,

vai se sentir enfraquecida.

Enquanto procuro a cor,

vou costurando a vida,

sem saber qual vai ser o resultado.

Caso ele não fique combinado,

dou um nó, encosto agulha, guardo a linha,

que essa culpa roxa não é minha.

É uma artimanha branca do passado.

 

Como nascem as manhãs, de Flora Figueiredo

O fundo dos olhos da noite

guarda silêncios.

Esconde na retina

a menina que corre descalça em campo aberto.

Pálpebras cerradas, a noite emudece.

A menina com medo

faz um furo no escuro com a ponta do dedo.

Cai um pingo de luz.

Amanhece.

Flora Figueiredo é uma poetisa, cronista, compositora e tradutora brasileira, nascida em São Paulo.

Esse Mário Quintana heim!

Hoje queria um dia feito de horas de oferecer
Porque há dias diferentes.
Dias especiais em que queremos encomendar o sol, a luz do horizonte, a doçura do ar.
Queria oferecer um dia hoje.
Um dia perfeito.
Embrulhados em momentos guardados
Talvez com uma fita cor de certeza calma
e um laço pleno de voltas cúmplices.
Só um dia.
Dado assim…
Mário Quintana (1906-1994) foi um poeta, tradutor e jornalista brasileiro.

O vôo, de Menotti Del Picchia

Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento,
desabam no abismo.
Que sabes tu do fim?
Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o
de estrelas.
Conserva a ilusão de que teu vôo te leva sempre
para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão
se pressentires que amanhã estarás mudo
esgota, como um pássaro, as canções que tens
na garganta.
Canta. Canta para conservar a ilusão de festa e
de vitória.

Talvez as canções adormeçam as feras
que esperam devorar o pássaro.
Desde que nasceste não és mais que um vôo no tempo.
Rumo do céu?
Que importa a rota.
Voa e canta enquanto resistirem as asas.

Menotti del Picchia foi um poeta, jornalista, político, romancista, contista, cronista e ensaísta brasileiro.

Biofilia, de Nelma da Silva Sá

Mulher, Natureza
Sou complexa, sou simples
Nas sutilezas dos emaranhados
Revelam-se belezas

Mulher, Guerreira
Sou divergência, sou convergência
Na quietude dos fios esvoaçantes
Iluminam-se veredas

Mulher, Vida
Sou mistério, sou transparência
Nas linhas das faces vivas
Refletem-se delicadezas

Mulher, Feiticeira
Sou força, sou incerteza
No intervalo dos instantes
Desabrocham-se Marias

Mulher, Deusa
Sou amor, sou natureza
No coexistir das diferenças
Cultivam-se Biofilias.

Biofilia – 16/08/2020 – domingo de outono. Da série “palavras no tempo”, por Nelma da Silva Sá.

Oração Celta

Que o canto da maturidade jamais asfixie a tua criança interior.
Que o teu sorriso seja sempre verdadeiro.
Que as perdas do teu caminho sejam sempre encaradas como lições de vida.
Que a música seja tua companheira de momentos secretos contigo mesmo.
Que os teus momentos de amor contenham a magia de tua alma eterna em cada beijo.
Que os teus olhos sejam dois sóis olhando a luz da vida em cada amanhecer.
Que cada dia seja um novo recomeço, onde tua alma dance na luz.
Que em cada passo teu fiquem marcas luminosas de tua passagem em cada coração.
Que em cada amigo o teu coração faça festa, que celebre o canto da amizade profunda que liga as almas afins.
Que em teus momentos de solidão e cansaço, esteja sempre presente em teu coração a lembrança de que tudo passa e se transforma, quando a alma é grande e generosa.
Que o teu coração voe contente nas asas da espiritualidade consciente, para que tu percebas a ternura invisível, tocando o centro do teu ser eterno.
Que um suave acalanto te acompanhe, na terra ou no espaço, e por onde quer que o imanente invisível leve o teu viver.
Que o teu coração sinta a presença secreta do inefável!
Que os teus pensamentos e os teus amores, o teu viver e a tua passagem pela vida, sejam sempre abençoados por aquele amor que ama sem nome. Aquele amor que não se explica, só se sente.
Que esse amor seja o teu acalento secreto, viajando eternamente no centro do teu ser.
Que a estrada se abra à sua frente.
Que o vento sopre levemente às suas costas.
Que o sol brilhe morno e suave em sua face.
Que respondas ao chamado do teu Dom e encontre a coragem para seguir-lhe o caminho. Que a chama da raiva te liberte da falsidade.
Que o ardor do coração mantenha a tua presença flamejante e que a ansiedade jamais te ronde.
Que a tua dignidade exterior reflita uma dignidade interior da alma.
Que tenhas lugar para celebrar os milagres silenciosos que não buscam atenção.
Que sejas consolado na simetria secreta da tua alma.
Que sintas cada dia como uma dádiva sagrada tecida em torno do cerne do assombro.
Que a chuva caia de mansinho em seus campos…
E, até que nos encontremos de novo…
Que Deus lhe guarde na palma de suas mãos.
Que despertes para o mistério de estar aqui e compreendas a silenciosa imensidão da tua presença.
Que tenhas alegria e paz no templo dos teus sentidos.
Que recebas grande encorajamento quando novas fronteiras acenam.
Que este amor transforme os teus dramas em luz, a tua tristeza em celebração, e os teus passos cansados em alegres passos de dança renovadora.
Que jamais, em tempo algum, tu esqueças da Presença que está em ti e em todos os seres.
Que o teu viver seja pleno de Paz e Luz!”

Encontrei essa oração em minhas andanças pela internet em vários sites.