Para além da curva da estrada, de Alberto Caeiro

Para além da curva da estrada Talvez haja um poço, e talvez um castelo, E talvez apenas a continuação da estrada. Não sei nem pergunto. Enquanto vou na estrada antes da curva Só olho para a estrada antes da curva, Porque não posso ver senão a estrada antes da curva. De nada me serviria estar olhando para outro lado E para aquilo que não vejo. Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer. Se há alguém para além da curva da estrada, Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada. Essa é que é a estrada para eles. Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos. Por ora só sabemos que lá não estamos. Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva Há a estrada sem curva nenhuma. Alberto Caeiro é um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa.

Costurando a vida! de Mia Couto

– Fica-te tão bem o dia que trazes. Onde é que o arranjaste? – Fui eu que fiz. Já me aborreciam os dias sempre iguais, sempre a mesma coisa, e resolvi arriscar um toque personalizado. – E como fizeste? – Aproveitei coisas que tinha e a que voltei a dar uso. Subi as bainhas da manhã para deixar entrar mais claridade e bordei uns pontos de exclamação nos bolsos para ter sempre à mão maneira de me espantar com a beleza da vida. Descosi velhos hábitos e teci algumas considerações importantes, como a de apanhar as malhas caídas dos dias com força de vontade e coragem. Depois, junto à fímbria da noite, deixei abertos uns rasgos de imaginação e prendi os sonhos com colchetes de luz à esperança num mundo melhor.

Sonhos, de Ana Maria Lopes

Sonhos Não sei quantas vezes em minha vida eu sonhei. Falo dos sonhos em alerta os sonhos sonhados despertos. O sonho é amigo e cúmplice da fantasia. Às vezes, sonho e fantasia se misturam tanto que geram espanto quando os tentamos separar. E a farra da mistura é tamanha que quando vamos um do outro decifrar, não sabemos se o sonho se vestiu de fantasia ou se a fantasia escapou para sonhar.     Ana Mara Lopes nasceu no Rio de Janeiro, mas radicada em Brasília. É escritora, poeta e  jornalista brasileira.

O espelho, de Mia Couto

Esse que em mim envelhece assomou ao espelho a tentar mostrar que sou eu. Os outros de mim, fingindo desconhecer a imagem, deixaram-me, a sós, perplexo, com meu súbito reflexo. A idade é isto: o peso da luz com que nos vemos.   É autor um autor da literatura contemporânea,  jornalista e biólogo moçambicano.

A Alma Imoral Nilton Bonder

"Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Nilton Bonder é escritor e rabino brasileiro, na Congregação Judaica do Brasil, no Rio de Janeiro.

Gabriela Mistral & Cecilia Meireles

Nesse livro comemora-se a amizade Gabriela Mistral e Cecília Meireles, duas grandes poetas do século XX.

Caixa de costura, de Flora Figueiredo

Venho costurando minha vida com linhas de saudade. Procuro equilibrar-lhes a cor para que o resultado final não seja triste. Por vezes, é o cinza que insiste; por vezes, impera o marrom. Ainda bem que tem saudade bonita; mudo o tom, amarro fitas, busco a outra ponta do novelo; intercalo a trama em amarelo. A saudade é assim mesmo, tecelã do tempo. Quando menos se espera, arremata o momento, leva embora, deixa a porta encostada, o cadarço de fora, e nunca avisa a hora de voltar. Ainda hei de costurar com verde florescente e, se a saudade chegar autoritariamente, vai se sentir enfraquecida. Enquanto procuro a cor, vou costurando a vida, sem saber qual vai ser o resultado. Caso ele não fique combinado, dou um nó, encosto agulha, guardo a linha, que essa culpa roxa não é minha. É uma artimanha branca do passado.  

Como nascem as manhãs, de Flora Figueiredo

O fundo dos olhos da noite guarda silêncios. Esconde na retina a menina que corre descalça em campo aberto. Pálpebras cerradas, a noite emudece. A menina com medo faz um furo no escuro com a ponta do dedo. Cai um pingo de luz. Amanhece. Flora Figueiredo é uma poetisa, cronista, compositora e tradutora brasileira, nascida em São Paulo.

Esse Mário Quintana heim!

Hoje queria um dia feito de horas de oferecer Porque há dias diferentes. Dias especiais em que queremos encomendar o sol, a luz do horizonte, a doçura do ar. Queria oferecer um dia hoje. Um dia perfeito. Embrulhados em momentos guardados Talvez com uma fita cor de certeza calma e um laço pleno de voltas cúmplices. Só um dia. Dado assim... Mário Quintana (1906-1994) foi um poeta, tradutor e jornalista brasileiro.