Viagem – José Saramago

A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse:“Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava.É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.

A Fonte e a Flor, de Vicente de Carvalho

Esta poesia é uma das mais lindas que conheço... “Deixe-me, fonte” – dizia  A flor, tonta de terror, E a fonte, sonora e fria, Cantava, levando a flor.“Deixe-me, deixe-me, fonte!”  Dizia a flor a chorar: “Eu fui nascida no monte…  Não me leves para o mar.E a fonte, rápida e fria,  Com um sorriso zombador,  Por sobre a areia corria,  Corria levando a flor.“Ai, balanços do meu galho, Balanços do berço meu!  Ai, claras gotas de orvalho  Caídas do azul do céu!”Chorava a flor, e gemia, Branca, branca de terror, E a fonte, sonora e fria, Rolava, levando a flor.“Adeus, sombra das ramadas,  Cantigas do rouxinol!  Ai, festas das madrugadas  Doçuras do pôr do sol!Carícias das brisas leves,  Que abrem rasgões de luar.  Fonte, fonte, não me leves,  Não me leves para o mar!…As correntezas da vida  E os restos do meu amor  Resvalam numa descida Como a da fonte e da flor

Os poemas – Mario Quintana

Os poemas são pássaros que chegamnão se sabe de onde e pousamno livro que lês.Quando fechas o livro, eles alçam vôocomo de um alçapão.Eles não têm pousonem porto;alimentam-se um instante em cadapar de mãos e partem.E olhas, então, essas tuas mãos vazias,no maravilhado espanto de saberesque o alimento deles já estava em ti...

Saber Viver – Cora Coralina

Não sei… Se a vida é curtaOu longa demais pra nós,Mas sei que nada do que vivemosTem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.Muitas vezes basta ser:Colo que acolhe,Braço que envolve,Palavra que conforta,Silêncio que respeita,Alegria que contagia,Lágrima que corre,Olhar que acaricia,Desejo que sacia,Amor que promove.E isso não é coisa de outro mundo,É o que dá sentido à vida.É o que faz com que elaNão seja nem curta,Nem longa demais,Mas que seja intensa,Verdadeira, pura… Enquanto durar!

A idade e a mudança – Lya Luft

(...)   Toda mudança cobra um alto preço emocional.   Antes de se tomar uma decisão difícil, e durante a tomada, chora-se muito, os questionamentos são inúmeros, a vida se desestabiliza.   Mas então chega o depois, a coisa feita, e aí a recompensa fica escancarada na face.   Mudanças fazem milagres por nossos olhos, e é no olhar que se percebe a tal juventude eterna.   Um olhar opaco pode ser puxado e repuxado por um cirurgião a ponto de as rugas sumirem, só que continuará opaco porque não existe plástica que resgate seu brilho.   Quem dá brilho ao olhar é a vida que a gente optou por levar.   Olhe-se no espelho...

Minha biblioteca. J. G. de Araujo Jorge

Conheci as poesias de J. G. de Araujo Jorge ainda na  adolescência. Gosto de todas, mas, algumas são especiais como Orgulho e renúncia, Meu céu interior e esta: Minha biblioteca Pátria e lar do pensamento, porto do coração. Minha loja de sonhos, mercado de emoções onde faço pelas madrugadas a minha “feira” para reabastecer meu espírito de realidades e ficções e sobreviver. Aí estão as prateleiras sortidas, estoques inesgotáveis de fantasias a experiências para a minha fome de conhecimentos, minha sede de descobertas, minhas ânsias de beleza. É só estender a mão e colher o livro como um fruto maduro que lentamente degusto e, milagrosamente, permanece inteiro, íntegro, intacto entre folhas e flores e surpreendentemente se renova e multiplica em inusitados sabores. Minha biblioteca parque de papel e palavras onde me perco em andanças e onde me reencontro em tantos caminhos desconhecidos, bosque de tantos livros, como as árvores com quem Beethoven conversava em seu bosque de Bonn. Meus livros, companheiros pacientes e silenciosos com quem dialogo horas sem conta, que não discutem, não alteiam a voz em tantas discordâncias inevitáveis, e humildemente se fecham e se recolhem a um simples gesto meu de impaciência, cansaço ou de sono. Minha biblioteca, abrigo certo oásis de águas e sombras no imenso deserto, que me faz decolar de tantas realidades e planar como uma asa-delta sozinho, sobre paisagens insuspeitadas. Minha biblioteca, pousada no caminho onde me sento, a pensar, e onde chego a esquecer que há um mundo rosnando ameaças ao redor, e adormeço como um menino feliz..

As sem-razões do amor – Carlos Drumonnd de Andrade

Eu te amo porque te amo, Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor.

Lição – Julio Cezar dos Reis Almeida

O menino estuda a lição,Dividido entre o que aprendeE os sons da rua que lhes chegam pela janela.A mãe faz tricô.A vó cochila na cadeira de balanço.O menino olha a rua.A rua irresistível que o chama...-Mamãe! Posso brincar?-Agora, não! Primeiro termine a lição.Terminei a lição.Mamãe não faz tricô.Vovó não cochila.Fecho a janela para que o barulho da ruaNão acorde as duas que dormemNo tempo estático das lembranças.-Mamãe, terminei!-Vá brincar, mas não demore!O tempo passou,Mas as lições da existência permanecem inconclusas.Hoje me pergunto:-Onde estão as plantas da minha vó?Os canteiros estão desfeitos.-Onde estão os novelos de minha mãe?A lã da existência acabou,Mas deixou o amaro gosto do sol da saudadeQue teima em brilhar nas lembranças.Se a lã do tempo tece o próprio novelo,A lição da ausênciaAprende-se com nó na garganta

Relembrando Artur da Távola em Amor Maduro

O amor maduro não é menor em intensidade.Ele é apenas silencioso. Não é menor em extensão.É mais definido colorido e poetizado.Não carece de demonstrações: Presenteia com a verdade do sentimento.Não precisa de presenças exigidas:amplia-se com as usências significantes.O amor maduro tem e quer problemas, sim, como tudo.Mas vive dos problemas da felicidade.Problemas da felicidade são formastrabalhosas de construir o bem, o prazer.Problemas da infelicidade não interessam ao amor maduro.Na felicidade está o encontro de peles, o ficar com o gosto da bocae do cheiro do outro - está a compreensão antecipada, a adivinhação,o presente de valor interior, a emoção vivida em conjunto,os discursos silenciosos da percepção, o prazer de conviver,o equilíbrio de carne e de espírito.O amor maduro é a valorização do melhor do outroe a relação com a parte salva de cada pessoa.Ele vive do que não morreu, mesmo tendo ficado para depois,vive do que fermentou criando dimensões novaspara sentimentos antigos, jardins abandonados, cheios de sementes.Ele não pede, tem.Não reivindica, consegue.Não percebe, recebe.Não exige, oferece.Não pergunta, adivinha.Existe, para fazer feliz.O amor maduro cresce na verdade e se esconde a cada auto-ilusão,basta-se com o todo do pouco. Não precisa e nem quer nada do muito.Está relacionado com a vida e por isso mesmo é incompleto,por isso é pleno em cada ninharia por ele transformada em paraíso.É feito de compreensão, música e mistério.É a forma sublime de ser adulto e a forma adulta de ser sublime e criança.É o sol de outono: nítido, mas doce.Luminoso, sem ofuscar.Suave, mas definido.Discreto, mas certo.